quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

A Literatura e sua plasticidade semântica

(Foto da aula sobre o poeta Manuel Bandeira no Espaço Pasárgada - 2010)

O ensino da Literatura no Brasil ainda aborda, na maioria dos casos, a definição de Literatura como a arte da palavra. O que não está errado. O problema é a visualização dos signos linguísticos no papel de maneira somente denotativa. A Literatura, por si, enquanto arte, nega toda e qualquer interpretação única sobre aquilo que está escrito. Não há um real significado de um verso, e tomo o termo 'real' aqui como 'exatidão'. As diversas faces de um poema ou prosa só é Literatura, na perspectiva de arte da palavra, enquanto permitir a pluralização de significados. Como, por exemplo, entender o verso "ganhei, perdi meu dia" do poeta modernista Carlos Drummond se não me valer das "varias faces sob a face neutra"?


Se olhar para a palavra no papel é tomá-la com seus vários sentidos, o contexto histórico também é fator sine qua non para entender algumas das faces de poemas, sobretudo se são épicos ou relatam algum acontecimento histórico-social. É o caso do poeta modernista português Fernando Pessoa ao escrever o verso "Navegar é preciso. Viver não é preciso". Visto de modo simplista há no mínimo duas possibilidades de interpretação: a denotativa e a conotativa. A primeira nos dá a ideologia, e aqui tomo como fulcro a visão Jakobsiana de efeito de sentido ideológico das palavras, como a visão nacionalista do poeta português. As navegações portuguesas por mares "nunca dantes navegados" deixaram marca histórica não só para o país, mas também na alma do poeta. "Navegar é preciso" está para a expansão ultra marítima do século XVI. "Viver não é preciso" nos mostra o risco de morte que seria navegar por um mar repleto de misticismos. A segunda, conotativa, é uma transferência desse verso que, segundo o próprio poeta era dito pelos navegadores antigos, para a vida propriamente dita. O poema no qual consta este verso, e eis aí mais uma sutilidade da arte literária, tomar um verso como um todo, naquilo que Aristóteles chamará na sua Poética de "urdidura da arte", ou seja, analisar um verso no contexto de seus outros versos, há uma corroboração da visão de transferi-lo para a vida: "Quero para mim o espírito [d]esta frase,/ transformada a forma para casar com quem eu sou:". Se com a proliferação da influência portuguesa através de suas descobertas e navegações do século XVI tornaram o país ibérico um destaque europeu na época, apesar dos riscos relatados não só por Pessoa mas também por Camões em "Os Lusíadas"- o episódio do "Velho do Restelo" é um exemplo disso- viver tornou algo que não seria preciso caso alguém não navegasse. Tomemos o termo navegar aqui no sentido de "criar", "tornar a vida grande" e segundo o escritor de "Mensagem", livro sobre os feitos heróicos portugueses na sua expansão, era necessário crescer enquanto pessoa "ainda que para isso tenha de ser o meu corpo (...) a lenha desse fogo", citando mais uma vez outro verso do mesmo poema. Entretanto, isso ainda diz pouco. Se o trecho analisado do poema de Pessoa for aprofundado ainda mais, deixando de lado a visão simplista, observaremos que a palavra "precisão" está, também, para o "exato". Navegar é "exato", pode-se calcular. Já a vida, nos seus mais diversos mistérios e incertezas "não é preciso", ou seja, não é exato, mas sim inexato.

Por ser a Literatura interpretada das mais diversas maneiras graças a sua possibilidade de liberdade interpretativa, salvo casos absurdos, o verso discutido aqui do poeta Fernando Pessoa nos mostra que a vida só é válida a partir do momento que nos arriscamos para vencer. Ele toma como base o seu nacionalismo para com Portugal a fim de abrir o leque até a vida. Logo, ver por um ângulo, o denotativo, prejudicaria uma das faces do poema.

(Isaac Melo)