segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Clipe Ingenua: a desinstalação da emoção





O primeiro capítulo do livro que inicia a escola literária Realista no Brasil, Memórias Póstumas de Brás Cubas, do escritor Machado de Assis, intitula-se “Ao Leitor”. Nele o protagonista, Brás Cubas, um defunto-autor, diz que a narrativa de sua vida “fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião”. Graves ou frívolos, o que vou salientar aqui é a importância das metáforas no novo clipe da cantora mexicana (ex-RBD) Dulce María. Diferente de qualquer outro documento visual do antigo grupo, hoje a maioria segue carreira solo, o clipe “Ingenua” é uma verdadeira síntese da movimentação de um ser inócuo à maturidade emocional. Estágio este alcançado com a experiência, musa máxima do fazer crescer.




Para começo de história, não discuto aqui a música. Ou melhor, não só a música. Ou ainda mais, não só a letra da canção. E pensar em música é perceber a letra, que por si já tem ritmo, sons, imagens, mas também a melodia. Eis aqui dois fatores a serem examinados. A esta função talvez dedique outra postagem; mas o que interessa nesse texto não é a música, mas o clipe Ingenua, por mais que a consulte quando necessário. Se somente a canção leva em conta, para sua interpretação holística, letra e melodia, o clipe vai mais além. Letra, melodia, vídeo. Fusão de dois sentidos: visão e audição. Uma verdadeira vitamina de linguagem.






Sem malícia; pureza; em que há inocência. Estas são algumas das definições para a palavra “Ingênua” segundo o professor Aurélio Buarque de Holanda. Mas, como já indicavam os filósofos gregos, uma pessoa não se banha num mesmo rio por duas vezes. Na segunda nem o rio é o mesmo, já que a água não para de ser renovada, nem a pessoa é a mesma, dada a experiência adquirida. O ser humano é feito de mudanças. “Mudam-se os tempos / mudam-se as vontades” já indicou no século XV o poeta português Luiz de Camões. O clipe “Ingenua” trata exatamente deste fenômeno inato ao ser humano, a mudança. De alguém já modificado, a letra da música trata desta pessoa (eu lírico) que reflete um passado de frustração, mas sem o qual não existiria essa reflexão no presente. A primeira imagem do vídeo desta música já revela algo que se mostrará de maneira “estranha” no meio do clipe, a imagem da tampa de um bueiro. Tampa molhada pela chuva, porém que lacra por completo a sujeira e imundice do líquido que ele cobre. Bueiro no chão, sujo, inferior. Isso destoará do eu lírico contrário, no plano superior e limpo. Essa limpeza é importante dado os momentos que este ficará sujo (ainda em urdimento com o simbolismo do esgoto tampado – tampado hoje, não ontem).





Chuva de um passado “gris”, de um ontem “desierto”. Cinza é cor do vídeo até seus últimos segundos. Imagens que nos remetem a um passado amoroso infantil, não na concepção de idade, mas na de ingenuidade. E por falar em infância, eis aqui uma das grandes metáforas destas imagens: a criança. Mas a infante não aparece sem que antes o eu lírico se mostre muito bem protegido por um guarda-chuva, também metáfora do início da proteção atual anti aquele passado. Recorro aqui, novamente, a Aurélio Buarque quando este descreve criança como: “pessoa ingênua, infantil, imatura”. É exatamente isso que representa a imagem infantil no clipe. A criança que amarra o coração com uma corda, ligada que está a um amor tão imaturo quanto aquela que costura o tal órgão, não é a mesma que aparece em seguida. Mas aqui existe uma das maiores poesias do vídeo. Assim como o bueiro (baixo, sujo) é o seu contrário um eu lírico alto, limpo, contrário ao vídeo; A criança que amarra não é a mesma que desamarra, esta última já devidamente imunizada, crescida, madura. O olhar da menina segue em direção à mulher. Duas imagens distintas representam isso. Já que são tão diferentes entre si. Uma a metáfora da ingenuidade, outra da maturidade amorosa. Por fim, as mãos vazias, livres do peso subjetivo daquele amor.









Hora de dizer como funcionaram os dias de ontem. Nestes, amante iludida de um homem casado. Suja (bueiro não tampado do passado?) numa relação adúltera onde o eu lírico não era a primeira pessoa, mas uma segunda. Entretanto hora de colocar a verdade deste passado em imagem. Mulher pequena, coração maior, superior, e num plano alto. Brilhantemente registrado no clipe. Depois, sujeira, arrependimento e a ilusão de um casamento (representado pelo vestido) tão segundo quanto o relacionamento deste casal. Somente o coração e uma fumaça contrastam com a pouca cor do clipe com o vermelho (paixão, amor, morte) destes dois.










Já que a vida é feita de mudanças e a experiência é como um carro com os faróis de trás acesos, vamos crescer, aprender, sair da ingenuidade, da infantilidade, desinstalar-se. Hora de sair do casulo. Sair da ilusão para o que ela me deu de verdade humana. Nada disso acontece como um relâmpago, porém, passo por passo. Primeiro isso, depois aquilo, em seguida aquilo outro. Primeiro guarda-chuva ( que protege da chuva de um passado), no entanto, esse passado, como o próprio sentido da palavra diz, passa, que nem uma chuva sede lugar ao sol. Tiremos as proteções do frio. Momento do sol, da cor e das asas para voar – última imagem do clipe- contrária ao bueiro introdutório. Livre de um passado “gris”, tem-se agora a liberdade, cor e vôo.













Grave ou frívolo, pilares da opinião segundo Brás Cubas, o que não se pode negar, caso deixado de lado os preconceitos musicais, é que o clipe da música “Ingenua” trás um degrau a mais para clipes pop’s tão sem sentido nos últimos tempos. Brás Cubas um defunto autor e não um autor defunto. O eu lírico do clipe não mais ingênuo, porém maduro de maneira que a música e o clipe desenlaçam as mãos e cada um segue com seu sentido. “Ingenua” no cd tem um valor, no clipe, outro. E eis uma das maiores funções da arte, desinstalar.




Link do clipe oficial:










Isaac Melo





quarta-feira, 13 de julho de 2011

"No Coletivo" de Jonatas Onofre





As férias do meio de ano chegaram e com ela aquela necessidade de postar algo interessante construído no período de janeiro a junho. E, mais uma vez, para não se digitar tanta coisa, escolhi o tema Literatura. Óbviu que esta temática é global demais. Especificando melhor, trata-se de uma parte da avaliação da cadeira de Poesia, a qual paguei com o doutor César Giusti(UFPE). Antes de dar início à parte do trabalho, esclareço aqui que o mesmo está oficialmente tripatido. A parte aqui digitada se trata da segunda. Ou seja, frases sem coerência ocorrem no corpo textual já que têm íntima ligação com os demais segmentos do texto. O tema também vale a pena ser discutido. Giusti pediu que se fizesse uma análise de um poema ( a critério do aluno). Diferente de 95% da turma que decidiram analisar a letra de músicas (paraliteratura), eu fui no fluxo contrário e dicidi abordar a poética de um escritor praticamente desconhecido dos intelectuais pernambucanos. A razão da escolha foram duas, a primeira pautada no tão clicherizado tema de "existe ou não existe literatura na música popular?" Nada me agradaria pegar uma música e analisá-la pois é fato que existe literaturidade - relembrando Roman Jokobson - na música, quando de qualdiade. A poesia não está só na Literatura. E a segunda razão é o quanto me incomoda ler grandes escritores, com uma arte impressionante, serem eclipsados por uma crítica que pouco se interessa pela literatura feita na favela, universidade, recitais. Assim sendo, o texto a seguir faz parte de um todo chamado "Manuscrito Ignorado: uma análise acerca do poema "No Coletivo" de Jonatas Onofre". Sabido disso, Jonotas Onofre é um desses poetas que escrevem com uma técnica não muito diferente dos grandes poetas, mas que, por razões diversas, ainda está na caverna da Literatura Pernambucana.




Boa leitura!



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Análise do Poema





No Coletivo



O tomar-se, entrar-se ônibus,



Abrir-se risco de contato,



é sempre tensão resumida



num medo, calado do íntimo






De jogar-se no coletivo,



mergulhar-se nos outros, dar-se



ao toque e assim afogar-se,



imergir-se por entre outros;






De mirar-se no coletivo



e mirando-se refletir-se,



encadear-se nos espelhos



que são os outros; De lançar-se






num pele contra-pele, rasgar-se



nos outros, esfolar-se todo;



Deformar-se no coletivo,



gastar-se, fundir-se nos outros.




Um dos maiores problemas em ser um artista da palavra é somar a influência de poetas admirados e criar uma arte não com a cara de seus ídolos, mas com um toque distintivo entra a poesia de um e de outros. Ser poeta é, antes de tudo, legitimar-se, e esta legitimação está atrelada a uma unidade coletiva de poesia. Sendo o poeta um, a poesia feita por este engloba um sentimento coletivo. É o que o poeta modernista Carlos Drummond de Andrade (2004) sinalizou no "Poema de Sete Faces": "Tenho duas mãos e o sentimento do mundo". E isso é corroborado pelo poema "Procura da Poesia" do mesmo poeta, talvez um dos maiores tratados do fazer poético, quando este diz que " o que falas e sentes isso ainda não é poesia". Mas pode vir a ser. E essa desinstalação de um escritor comum para um artista da palavra, passa, sem sombra de dúvidas, pela leitura e exercício da poesia. Porém, como já se percebeu pelos exemplos citados, ter a técnica da palavra, coletivizar uma reflexão do mundo e, assim, legitimar, não é o suficiente para um campo cultural que pouco se interessa pelo estudo da poesia encontrada nas favelas, becos, universidades. Iniciemos, pois, a análise do poema.




"No Coletivo" se configura com um poema formado por desesseis versos predominantemente octossílabos e sem rimas, divididos em quatro estrofes. A fim de observar o ritmo do poema, segmentaresmo seus versos:

O / to / MAR / -se, / en/ TRAR /-se / Ô /ni /bus,



a /BRIR /-se / RIS /co / de / con /TA /to,



é / SEM /pre / ten /SÃO / re /su /MI /da



num / ME /do, / co / LA /do / do / ÍN /ti /mo







De / jo /GAR /-se / no / co /le /TI /vo,



mer /gu /LHAR /-se / nos / OU /tros, / DAR /-se



ao / TO /que e / as / SIM / a/ fo /GAR /-se,



i/ mer /GIR /-se / por / EN /tre / OU /tros;






De / mi /RAR /-se / no / co /le /TI /vo



e / mi /RAN /do /-se /re /fle/ TIR/ -se,



en /ca /de /AR /-se / nos / es /PE /lhos



que / são / os / OU /tros; / De / lan /ÇAR /-se






num / PE/ le / con /tra-/ PE/ le,/ ras /GAR/ -se



nos / OU /tros,/ es /fo/ LAR/ -se / TO/ do;



De /for /MAR/ -se/ no /co/ le/ TI/ vo,



gas /TAR/ -se,/ fun/ DIR/ -se/ nos/ OU/ tros



A primeira coisa que pula aos olhos do leitor é a recorrência da partícula "-se". Ou seja, verbos de ação realçados por este pronome. No entanto, estes verbos não querem apenas indicar um ato exercido e sofrido pelo sujeito, mas também "anonimar" o alvo da mensagem. O não aparecimento de uma referência para quem apontar a semântica dos verbos, ou seja, o sujeito oracional, corrobora esse anonimato. A poesia funciona como um veículo que percorre um caminho pré-estabelecido, do autor para o leitor. O primeiro constrói o veículo, o segundo dá o acabamento final. O que é muito relevante se observar aqui é que não existe um sujeito delimitado, marcado pela voz poética. Ou seja, esta fala para um remetente não marcado no texto - sem sexo, sem cor, sem nada, somente um ser caótico perdido num mundo individual e com cede de sair desta solidão para invadir um lugar completamente contrário a este, o coletivo. O leitor é convidado, através de como as expressões verbais se apresentam no corpo do poema, a navegar na dicotomia privado-coletivo o qual ele sugere. Igualmente, observando-se com mais clerividência esse conjunto de verbos, e o chamo de conjunto por formarem em cada estrofe uma relação íntima de sentido, perceber-se-á que "tornar-se", "entrar-se", "abrir-se" exige daquele que vivencia essa poesia, sair de um estado para outro. "Tornar-se" nada mais é que sair de um estado A para B; o mesmo está para "entrar-se", o qual também remete á idéia de se deslocar de A para entrar em B; "abrir-se", sair do fechado A para o aberto B. Ainda assim, os três verbos associados à partícula "-se" gera a sonoridade aliterativa, uma vez que o som [s] é ecoado nos verbos seguintes. Assim, quando cessado a reiteração do "-se", entra em cena seu eco. Logo, acontece no terceiro verso "é sempre tensão resumida". O mesmo fenômeno está no segundo e terceiro versos da segunda estrofe "mergulhar-se nos outros, dar-se / ao toque e assim afogar-se". o eco do "-se" somente é ceifado no último verso da primeira estrofe, este dotado de um obscurantismo próprio do universo interno do ser humano, "num medo, calado no íntimo".


A segunda estrofe, e essa já dá início a enumeração do motivo pelo qual se tem "medo", apontado no último verso da primeira estrofe, abre o leque da fobia e, caso as ações verbais sejam realizadas, sua consequência. A primeira razão é apresentada por mais um verbo de ação e um pronome oblíquo que o realça, "jogar-se no coletivo". E a enumeração continua: "mergulhar-se nos outros", "dar-se ao toque" e, como consequência da realização daquilo que se tem medo "afogar-se, / imergir-se por entre outros". Mais uma vez, e isso é uma constante em todo o poema, o sentido de mudança de estado está presente nas semânticas verbais. O mesmo ocorrerá na terceira estrofe. Ela é iniciada com mais uma enumeração daquilo de que se tem medo relatado no verso final da primeira estrofe: "De mirar-se no coletivo", mais uma vez, a consequência desse "mirar-se" é relatada em seguida: "e mirando-se refletir-se". O "refletir-se" que vem caminhando pelos modos verbais desde o início da análise, capaz de sugerir a reflexão especular. Essa ação e reação (especular) expressa tão fortemente no dissecar do poema ainda remete ao "mirar-se", à imaginação naquele coletivo. Dessa vez, mais que em todo o corpo poético aqui analisado, aparece a palavra que parece sintetizar todo o sentido do poema, "refletir-se", como se o sentido do verbo, sem o pronome oblíquo não já fosse o suficiente para gerar a ação e reação verbais e ainda ratificados pelo "encandear-se nos espelhos". Há, neste trecho, a menor distância entre o "eu" descrito pela voz poética e o mundo desejado, o do coletivo. Entretanto, esses espelhos não são o próprio ser que inspirou essa voz poética, mas são espelhos "que são outros". Em outras palavras, não existe aqui um reflexo que bate e volta em sentido contrário (voz poética- "eu"), mas que, antes de tudo, refrata, desvia seu sentido não mais para o alvo de onde veio, porém para "os outros". É a refração que deforma, se gasta nos outros. Pela razão do "refletir-se", o qual nem sempre é para o foco, mas para os lados representado pelos "outros", é que o alvo dos verbos, como já fora citado, exerce ou recebe a ação indicada por eles. Segundo Jorge Luiz Borges os espelhos são abominações, uma vez que o número de homens é multiplicado. E essa pluralização do homem leva, no caso do poema onofreano, a parceber-se como um "eu", num universo contrário ao "eu", de "nós", os outros. Diferente de Jorge Luiz Borges, Evaldo Coutinho diz ser o espelho, por mais que abominável, como dito por Borges, efêmero. Ele, o espelho, é fatalizado pela duração do tempo de exposição diante dele. Em outras palavras e retornando para o poema de Jonatas Onofre, existe esse "eu" o qual tem medo de refletir-se nos outros, logo essa reflexão acontece só no plano do "querer", e pode sinalizar, ainda, que é passageira - pautada que está no tempo do poema. E, como se a fantasia não bastasse, o "eu" observado pela voz poética não se encontra nessa imagem refletida nos outros. Está sempre aquém do mundo desejado, fechado que está num mundo todo seu e limitado.


Por fim, o último verso desta terceira estrofe é finalizado pela expressão "De lançar-se", somente complementado no seu sentido pela leitura do primeiro verso da última estrofe: "num pele contra-pele". Esse enjambement - complementação do sentido do verso somente com a leitura de seu sucessor - separa, em quadras diferentes do poema, o seu ápice, o momento de explosão. O "medo" e o "abrir-se risco de contato" indicados na primeira estrofe têm nesta derradeira a sua concretização. O contato passa agora a ser tão imaginário quanto o restante do poema: "pele contra-pele", "rasgar-se nos outros, esfolar-se todo;/ deformar-se no coletivo, gastar-se, fundir-se nos outros".


Saídos de uma interpretação lectural para um entendimento global do poema a partir do título, o que se vê é uma poema intrigante. Quem estará no coletivo? Quem pode ser esse eu-social? As respostas a essa pergunta não são reveladas no poema por poder ser qualquer um que leia estes dezesseis verbos (sentimento plural) de Jonatas Onofre. O título ainda sugere o coletivo como aquele que faz a circulação de pessoas, o ônibus, expresso no primeiro verso. Esse alguém que tem a necessidade de "tomar-se" ônibus, e, o que parece mais absurdo ainda do ponto de vista do sentido literal:"entrar-se ônibus". Não sendo possível isso no plano real, entra o conotativo (específico da lingagem poética, mas não só ele). A plasticidade semântica do tomar e entrar ônibus é por esta vontade introspectiva de sair da redoma espritual no qual se encontra, isolado de tudo e todos para participar do mundo que cerca este ser. E, de fato, o ônibus representa a metáfora da aglomeração de pessoas, figurando, aí, o medo, que cala no íntimo, indizível, inefável, silêncio. Ainda assim é um medo de invadir esse coletivo, de se doar para o mundo em detrimento de um isolamento ilógico e regado a medo. A retração nesse submundo da alma não tem somente receio de sair desse universo de individualismo para o coletivismo, mas, diferente do medo, liberta-se no pensamento, imaginar, para citar Manuel Bandeira, "a vida que poderia ter sido e que não foi", o se tornar coletivo. Essa imaginação pode levá-lo(a) a "refletir-se" e mostrar o poço escuro no qual está. Ou seja, não há só alguém com medo de um mundo segundo, mas também de perceber e clarear o obscurantismo do mundo primário com seus defeitos e caos. O medo do novo. Por fim, a última estrofe, já premeditada pelas anteriores, demonstra toda a possibilidade de cede para o encontro do mundo exterior, viver agora "num pele contra-pele, rasgar-se / nos outros, esfolar-se todo; / Deformar-se no coletivo, / gastar-se, fundir-se nos outros", como, em um só momento, aproveitasse tudo o que pudesse, mesmo que no campo da ilusão, daquele mundo atraente e do qual nunca esteve, numa espécie e João Gostoso bandeiriano o qual, em uma única noite, "Bebeu / Cantou / Dançou/ Depois se jogou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado." O João ( ou seria Maria?) ainda está no falso mundo da individualidade, tão polissêmico quanto o título do poema, No Coletivo.


Isaac Melo



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Idependente da análise aqui feita, ela não esgota a multiplicidade de sentido que se pode extrair do poema de Jonatas Onofre. Esta análise e interpretação serve para guia da horizontes acerca da arte deste poema, sem, no entanto, limitar sem campo interpretativo.



quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

A Literatura e sua plasticidade semântica

(Foto da aula sobre o poeta Manuel Bandeira no Espaço Pasárgada - 2010)

O ensino da Literatura no Brasil ainda aborda, na maioria dos casos, a definição de Literatura como a arte da palavra. O que não está errado. O problema é a visualização dos signos linguísticos no papel de maneira somente denotativa. A Literatura, por si, enquanto arte, nega toda e qualquer interpretação única sobre aquilo que está escrito. Não há um real significado de um verso, e tomo o termo 'real' aqui como 'exatidão'. As diversas faces de um poema ou prosa só é Literatura, na perspectiva de arte da palavra, enquanto permitir a pluralização de significados. Como, por exemplo, entender o verso "ganhei, perdi meu dia" do poeta modernista Carlos Drummond se não me valer das "varias faces sob a face neutra"?


Se olhar para a palavra no papel é tomá-la com seus vários sentidos, o contexto histórico também é fator sine qua non para entender algumas das faces de poemas, sobretudo se são épicos ou relatam algum acontecimento histórico-social. É o caso do poeta modernista português Fernando Pessoa ao escrever o verso "Navegar é preciso. Viver não é preciso". Visto de modo simplista há no mínimo duas possibilidades de interpretação: a denotativa e a conotativa. A primeira nos dá a ideologia, e aqui tomo como fulcro a visão Jakobsiana de efeito de sentido ideológico das palavras, como a visão nacionalista do poeta português. As navegações portuguesas por mares "nunca dantes navegados" deixaram marca histórica não só para o país, mas também na alma do poeta. "Navegar é preciso" está para a expansão ultra marítima do século XVI. "Viver não é preciso" nos mostra o risco de morte que seria navegar por um mar repleto de misticismos. A segunda, conotativa, é uma transferência desse verso que, segundo o próprio poeta era dito pelos navegadores antigos, para a vida propriamente dita. O poema no qual consta este verso, e eis aí mais uma sutilidade da arte literária, tomar um verso como um todo, naquilo que Aristóteles chamará na sua Poética de "urdidura da arte", ou seja, analisar um verso no contexto de seus outros versos, há uma corroboração da visão de transferi-lo para a vida: "Quero para mim o espírito [d]esta frase,/ transformada a forma para casar com quem eu sou:". Se com a proliferação da influência portuguesa através de suas descobertas e navegações do século XVI tornaram o país ibérico um destaque europeu na época, apesar dos riscos relatados não só por Pessoa mas também por Camões em "Os Lusíadas"- o episódio do "Velho do Restelo" é um exemplo disso- viver tornou algo que não seria preciso caso alguém não navegasse. Tomemos o termo navegar aqui no sentido de "criar", "tornar a vida grande" e segundo o escritor de "Mensagem", livro sobre os feitos heróicos portugueses na sua expansão, era necessário crescer enquanto pessoa "ainda que para isso tenha de ser o meu corpo (...) a lenha desse fogo", citando mais uma vez outro verso do mesmo poema. Entretanto, isso ainda diz pouco. Se o trecho analisado do poema de Pessoa for aprofundado ainda mais, deixando de lado a visão simplista, observaremos que a palavra "precisão" está, também, para o "exato". Navegar é "exato", pode-se calcular. Já a vida, nos seus mais diversos mistérios e incertezas "não é preciso", ou seja, não é exato, mas sim inexato.

Por ser a Literatura interpretada das mais diversas maneiras graças a sua possibilidade de liberdade interpretativa, salvo casos absurdos, o verso discutido aqui do poeta Fernando Pessoa nos mostra que a vida só é válida a partir do momento que nos arriscamos para vencer. Ele toma como base o seu nacionalismo para com Portugal a fim de abrir o leque até a vida. Logo, ver por um ângulo, o denotativo, prejudicaria uma das faces do poema.

(Isaac Melo)

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

2011.1

Que saudade disso aqui. Estou ausente graças a meu brinquedo de estimação, a Literatura. No entanto, as férias existem. Textos estão prontinhos para darem as caras por aqui. Em breve alguns por aqui.

Antes deles, coisas muito boas aconteceram neste tempo que passei ausente. Um artigo científico sobre a construção de Macabéia no livro A Hora da Estrela de Clarice Lispector me engaiolou dias a fio num estudo minuncioso sobre tal construção baseado no que Mickail Bakhtin chamou de autor-pessoa e autor-criador. Este artigo aparecerá por aqui em breve. Um texto dissertativo-argumentativo sobre o verso de Fernando Pessoa (Navegar é preciso. Viver não é preciso) também deverá aparecer. Texto este analizado e elogiado por Antônio Carlos Xavier, doutor em Línguistica e professor da Universidade Federal de Pernambuco. Mas "isso ainda diz pouco", como disse Severino retirante em João Cabral de Melo Neto. Um trabalho de Teoria da Literatura sobre um soneto de Bruno Tolentino, o qual vou publicar, numa parceria com Iranildo Cruz, também foi um mérito neste período.

E as férias estão me dando o prazer de falar sobre aquilo que mais me incomoda também. Uma análise do uso da gíra "tipo assim", tão rejeitada pelos gramatiqueiros está saindo do forno. E um outro artigo começa a ser escrito, este com a ajuda de uma aluna do pré-vestibular. O tema é novamente o livro "A Hora da Estrela", sendo que desta vez numa análise do som nesta obra.

Enfim, novidades vêm por aí e espero conseguir me superar cada vez mais.

Em janeiro estou de volta às aulas de Literatura.

Até lá.

"Até aqui nos ajudou o Senhor."